Identidade sacerdotal não nasce de desejos pessoais, diz cardeal

Dom Eugenio de Araujo Sales
Cardeal Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro


Uma crise de fé se manifesta de diversas maneiras. Uma delas insere-se na eclesiologia. Constantemente são veiculadas afirmações que, mesmo não erradas plenamente, são, no mínimo, dúbias. Uma arbitrária concepção da instituição fundada por Jesus Cristo leva a desvios e a consequências danosas à paz e à concórdia no interior da comunidade eclesial. A grande maioria permanece fiel, embora sofrendo as incursões de uma minoria.

Dada a importância do padre, para todos, é necessário da parte do Pastor, responsável diante de Deus pela ortodoxia, um comentário sobre o sacerdócio.

O Concílio Vaticano II traz, como proposição dogmática, a diferenciação essencial – “e não apenas em grau” – entre o sacerdócio comum dos fiéis e o ministerial ordenado (Lumen Gentium, nº10). Este último corresponde a uma vontade consignada pelo Fundador da Igreja, que adota uma estrutura na qual a autoridade de Deus é exercida sacramentalmente pela Ordem. O Concílio diz que “o sacerdote ministerial, pelo poder sagrado de que é investido, organiza e rege o povo de Deus” (Idem). Assim, uma função específica na comunidade eclesial e para ela.

Ora, é pelo menos dúbio declarar que não existe uma divisão de tarefas, determinada e precisa. E que os ministérios – sem excluir explicitamente o que é conferido pelo sacramento da Ordem – surgem segundo as necessidades dos leigos.

Salvaguardada a identidade divina do sacerdócio ministerial em seus graus: episcopado, presbiterato e diaconato, o Concílio reclama também a participação própria do laicato católico. Juntos, formamos todos a Igreja, “Povo de Deus”, sem nos esquecer, no entanto, de que ele não é um mero agrupamento sociológico, existente pelas leis dos homens e por seus regimes políticos. Trata-se, antes de tudo, de uma realidade sobrenatural, gerada e sustentada pela graça.

É o que São Paulo expõe no conceito de “Corpo Místico”. Em Lumen Gentium, nº 20, lemos: “Os Apóstolos, nesta sociedade hierarquicamente organizada, cuidaram de constituir os seus sucessores”. Sendo assim, a Igreja possui uma cabeça, o próprio Salvador; este prolonga sua presença e ação na hierarquia, que não é simples resultado do consenso “popular” ou a ele sujeita. Goza, portanto, de uma potestade compreensível apenas aos olhos da Fé e que a torna participante do ministério de Cristo, Pastor. Essa missão é desempenhada primeiramente pelo serviço apostólico do Sucessor de Pedro, “princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade de Fé e de comunhão” (Lumen Gentium, nº 18). E o é também pelo Colégio Apostólico que, no entanto, “não tem autoridade, se nele não se considera incluído, como cabeça, o Romano Pontífice” (Idem, nº 22). Os Bispos, segundo o Concílio, têm “poder próprio”, exercendo-o, porém, sempre com Pedro e sob ele (Ibidem, nº 22). A igualdade fundamental na fraternidade e responsabilidade de todos encerra, assim, uma diferença essencial! Pelo poder hierárquico que advém do Senhor. As eventuais falhas no exercício do governo não justificam uma democratização contrária à Doutrina entregue pelo Mestre aos Apóstolos.

Ora, pretender reduzir a atuação presbiteral a um mero compromisso com as realidades temporais é, no mínimo, uma confusão teológica, quando não um erro crasso. O mesmo se diga da pretensão de a Igreja e o mundo não serem distintos entre si. Aliás, a Instrução Libertatis Nuntius chamou a atenção para o desvio doutrinário, que consiste em pretender identificar a História da Salvação simplesmente com a humana, como se existisse uma história única, a da vida terrena.

São concepções como esta que semeiam a confusão entre os fiéis, corroem os Seminários que formam padres que, no pleno entusiasmo de sua juventude, doam-se com generosidade, percorrendo, porém, caminhos errados.

A redução da imagem do presbítero pode acontecer também, e, infelizmente, não se trata apenas de hipótese, na acentuação unilateral de sua presença na problemática social, em detrimento de sua identificação com o Cristo Sacerdote.

Qual o remédio, diante de tanta perplexidade?

No que toca aos ministros sacros e às organizações eclesiais que se pretendem ao seu serviço, creio que importa retomar o conselho expresso pelo Vaticano II: “Como hoje em dia a humanidade tende cada vez mais para a unidade civil, econômica e social, assim importa que os sacerdotes, unindo o seu zelo e os seus esforços, sob a orientação dos Bispos e do Sumo Pontífice, procurem suprimir qualquer motivo de dispersão, para que todo o gênero humano seja reconduzido à unidade da família de Deus” (Lumen Gentium, nº 28). Qualquer divisão implicará sem dúvida no enfraquecimento da autêntica fisionomia do sacerdócio católico.

O padre foi constituído na comunidade eclesial para servir seus irmãos, em favor da causa de Cristo. Fá-lo-á enquanto preservar sua identidade. E esta nasce da vontade explícita do Salvador, não de interpretações subjetivas, de inclinações ou desejos pessoais. O povo tem o direito de exigir de seus presbíteros as características que lhe são inerentes, conforme o modelo traçado pelo Redentor.


Fonte: CN

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